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A fé dos cientistas

26/10/2014  01h40

 

Falar de fé no contexto científico parece blasfêmia. A ciência não é a antítese da noção de fé, baseada como é em certezas, na verificação explícita de hipóteses? Essa visão da ciência como perfeitamente lógica e racional é uma idealização.

É claro que o produto final da pesquisa científica deve ser algo concreto, hipóteses que devem ser comprovadas, dados obtidos em experimentos passíveis de repetição por outros. Talvez seja esse o grande mistério da ciência, uma atividade criada por humanos, seres falíveis que almejam a perfeição.

No início do século 20, a física estava em crise. Experimentos demonstravam propriedades da matéria que não podiam ser explicadas pelas teorias então vigentes, baseadas na mecânica de Newton ou no eletromagnetismo de James Maxwell, os pilares da física clássica.

A exploração do mundo dos átomos expôs uma realidade completamente diferente, onde novas regras eram necessárias. Cientistas tiveram que reformular sua visão de mundo, o que nunca é fácil.

No mundo clássico, a Natureza fazia sentido, seguindo regras simples de causa e efeito, o que chamamos de determinismo. No mundo quântico, essa certeza tem que ser posta de lado, e precisamos adotar regras baseadas em probabilidades. Einstein, Schrödinger, Planck e outros grandes nomes da ciência sofreram, recusando-se a aceitar isso. Para eles, a natureza tinha que seguir regras simples, determinísticas, mesmo se não soubéssemos quais.

Esse tipo de postura só pode ser chamado de fé. É acreditar numa natureza ordenada, racional, mesmo quando se manifesta de forma aleatória. "Deus não joga dados," escreveu Einstein a seu colega Max Born. Einstein e outros buscaram teorias que explicassem as estranhas probabilidades quânticas como manifestações de uma ordem mais fundamental. E falharam.

Existe, no entanto, uma diferença essencial entre a fé religiosa e a fé científica: dogma. Em ciência, o dogma é insustentável, pois cedo ou tarde mesmo as ideias mais arraigadas –se erradas– sucumbem á evidência dos dados. Em ciência, a fé numa ideia errada tem de ser abandonada. Na religião, a evidência dos dados é elusiva ou mesmo irrelevante, o que faz com que a fé seja uma proposta sempre viável.

Estamos passando por um momento curioso na física de altas energias e na cosmologia. Algumas teorias populares podem não ser testáveis. Isso significa que não podemos determinar se estão erradas, o oposto da proposta científica.

Feito um zumbi que nunca morre, é possível que uma teoria siga sempre sendo redefinida de forma a escapar do alcance dos experimentos. É o caso, por exemplo, da supersimetria, uma simetria hipotética da natureza onde cada partícula de matéria (elétrons, quarks...) tem uma parceira supersimétrica. Propostas há quatro décadas, essas partículas nunca foram encontradas.

No ano que vem, o Grande Colisor de Hádrons na Suíça dobra sua energia em busca delas. Se forem encontradas, ótimo. E se não forem? Minha previsão é que, enquanto alguns físicos abandonarão a supersimetria, outros continuarão a crer nela, dizendo que ela ocorre a energias inalcançáveis por nossas máquinas. Nesse caso, essa hipótese científica se tornará um artigo de fé.

 

Marcelo Gleiser é professor de física e astronomia do Dartmouth College, em Hanover (EUA). É vencedor de dois prêmios Jabuti e autor de 'A Ilha do Conhecimento e 'Criação Imperfeita', entre outros títulos.